* Márcio Alexandre
“Venham. Venham todos ver a cobra misteriosa”, gritava o artista para os transeuntes. “Venham, Venham”, repetia a plenos pulmões.
Os gritos tinham a missão de superar a dificuldade técnica do pequeno sistema de som: um megafone antigo. Para atrair ainda mais, uma vitrola tocava música quase inaudível.
O homem, misto de coquista, repentista e cordelista, era também vendedor.
A mala, onde também se escondia a tal cobra, servia para guardar todos os apetrechos do “caixeiro viajante”
Começava a juntar gente. E menino. Eu era um deles. Curioso, me aproximava pra ver o que era. Medroso tinha medo que fosse realmente uma cobra.
Mas me fascinava mesmo era quando ela fazia os versos de improviso. Quando tocava o pandeiro e soltava risos. E quando ria do que não dava certo.
O olhar brilhando só era interrompido quando o homem batia na mala. O susto maior que o encanto. Ele gritava ainda mais forte: ” É é é é s coooooobra mis-te-rio-sa”.
Quanto mais tocava, quanto mais “acordava” a cobra, quanto mais fazia versos, mais gente juntava. Mais menino aparecia.
Quando todos anseiavam pelo grande final, ele tirava da mala uma bolsa menor. “Estaria ali a peçonhenta ?”, todos se questionavam, embora muitos não quisessem realmente vê-la.
E tirava delas seus produtos, vários tipos de unguentos: pomada na latinha, loção no vidro, géis em garrafa.
Tudo com poder de curar, sarar e fazer sumir pano preto, pano branco, micose, impingem, erisipela, vitiligo, pneumonia, bronquite.. Fui apresentado pela primeira vez ao sumário do CID.
E o artista seguia. Misturando arte, estética cigana, lógica circense, poesia, vendas e mistério. Tudo no caldeirão da cultura popular. E nada de chegar a hora da grande estrela aparecer.
Eu tinha pouco mais de 7 anos e, entre medo e curiosidade, também queria ver o animal.
“É um charlatão”, dizia um. “Um enganador”, gritava outro. Entre poucos insultos, se destacavam os muitos elogios. “Ele é muito ínvocado”, destacava a maioria. Me maravilhei com essa definição embora não soubesse o que ela definia.
Muitos comprovavam os “remédios”. Alguns colocavam gorjetas no chapéu pela “exibição”.
O homem sabia a arte de vender, mas queria mesmo era vender a sua arte.
Quando se aproximava o grande final, eu era obrigado a deixar o local e voltar pra banca de frutas onde era ajudante.
Não sei se algum dia o réptil apareceu, mas sei que foi a primeira vez que alguém conseguiu me encantar pelo mistério. Foi ali que firmei uma espécie de devoção pela cultura popular.
* Professor e jornalista
1 comentário
Foi dai que surgiu ” essa pessoa conversa mais do que o homem da cobra”