* Abdias Duque de Abrantes
Os primeiros saques de que se tem notícia são de 1877, quando a grande seca transformou o que era um fenômeno muito mais climático num fenômeno social. Fortaleza, na época uma cidade de cerca de 25 mil habitantes, foi invadida por uma multidão de mais de 110 mil retirantes. Aconteceram então os primeiros saques.
Eram hordas de esfomeados esquálidos, que durante as secas, costumavam invadir as cidades em busca de comida. Para satisfazer esse tipo de necessidade primaríssima do homem, a turba invadia as cidades e saqueava mercearias, caminhões, mercadinhos da Conab e, eventualmente, supermercados.
Os saques são resultado de uma compreensão generalizada do que deve ser a distribuição da riqueza num momento de crise.
O furto famélico consiste na subtração de coisa alheia móvel, disposto do art. 155 do CP onde aquele que se encontra em estado de penúria, visa saciar sua própria fome ou de seus entes queridos.
Os saques impediram o continuísmo dos militares nos anos 80 e dos tucanos no governo federal no início dos anos 2000, que, a exemplo do atual, privilegiou especuladores e o sistema financeiro ao desprezar as justas demandas do povo.
O saque famélico ocorrido na noite de sábado (16) no supermercado da rede Inter, em Inhaúma, zona norte do Rio de Janeiro, revela a escalada do flagelo da fome e da insegurança alimentar, que atingem com maior intensidade a população mais pobre das periferias das capitais e regiões metropolitanas — um cenário dramático.
Diante das circunstâncias do caso do saque no Rio de Janeiro, a tentativa de furto de carnes e outros alimentos pelos moradores desempregados e com fome, não pode levar a outra conclusão senão a de que agiram em manifesto estado de necessidade, o que afasta a ilicitude da conduta.
É imperioso dizer em alto e bom som que o aumento generalizado dos preços dos alimentos da cesta básica, do aluguel, do botijão de gás, dos combustíveis e das tarifas de energia elétrica, que têm penalizado as camadas mais pobres e médias da população brasileira, são um resultado direto da política econômica do governo da extrema-direita com o aval de parlamentares do Centrão.
O desemprego continua muito alto, cerca de 14 milhões de trabalhadores, e a fome castiga diariamente mais de 20 milhões de brasileiros e cerca de 120 milhões padecem de algum tipo de insegurança alimentar, questões cruciais que demonstram na ponta o resultado final da política excludente de Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes.
Os níveis de miséria e fome estão nas alturas e não param de crescer, o que pode fazer a situação sair do controle.
O fato acontece num momento em que a inflação explode no país, sobretudo a dos gêneros alimentícios, corroendo gravemente o poder de compra dos brasileiros, numa crise socioeconômica que parece sem fim para o governo Bolsonaro, que assiste a tudo estático sem lançar mão de qualquer estratégia política que tente mudar a onda de miséria e fome que assola significativas frações populacionais da nação brasileira.
* Advogado, servidor público, jornalista e pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Potiguar (UnP), que integra a Laureate International Universities.