*  Márcio Alexandre

 

Tinha carro imponente, uma picape lustrosa. Seu grande orgulho patrimonial. Uma conquista que, na sua mente, o tornava mais importante que os outros. E mais merecedor que muitos.

O emprego lhe garantia um bom salário para os padrões brasileiros. Permitia inclusive que mantivesse o filho em uma escola da rede privada. Dessas reservadas a pobres mais “arremediados”. Mas se achava muito rico. Melhor que todos. Comia simples, mas arrotava prepotência. As roupas não condiziam com a pose com a qual se revestia. Como se diz no popular: se achava.

A chegada à escola era sua grande apoteose. Entre a ida à sala de aula para deixar o rebento e sua arrancada rumo ao trabalho, nenhum outro bólido era mais bonito, mais robusto e, obviamente, mais caro que o seu. Isso o maravilhava. O tirava do chão. Não só denotativamente.

Insistia em não lembrar da origem simples, porque o salário razoável lhe inflava o ego e este lhe dava a falsa sensação de que estava no mesmo patamar, financeiro e social, de quem o explorava. Passou a frequentar alguns lugares e, principalmente, eventos, que os patrões também frequentavam. Manifestações, em especial. Regadas a dancinha ridículas e ornamentadas com patos. Amarelos, para combinar com o clima de falso civismo que ecoava.

Empoderou-se. Empavonou-se. Foi cooptado. Não por propostas. Muito menos por promessas. Sentia que algumas palavras ditas por um capitão-mor da falta de escrúpulos faziam acordar o ódio que hibernava no peito. A raiva adormecida que disfarçava em nome da convivência social. ´Mitolizou-se. Embarcou na onda. E fez o país naufragar.

A crise, fruto do desgoverno que se orgulha de ter ajudado, lhe bateu à porta. E entrou, mesmo ele se negando a dar passagem. Vendeu o carrão. Aos mais próximos, justificou que compraria um mais novo, mais potente, mas vistoso. Dentro de casa, envergonhado, diz que não pode mais mantê-lo. O dinheiro da venda foi todo corroído pela inflação, que fez os gastos domésticos quase dobrar. Não vai adquirir mais sequer um carro popular.

Agora, leva o rebento à escola a pé. O primeiro a chegar para evitar os olhares daqueles que nunca quis encarar quando se achava muito abonado. É um dos últimos a ir buscar o filho de volta. Mesmo com sol inclemente. Prefere chegar bem mais tarde, quando a unidade educacional está quase deserta. O dinheiro segue michando, apesar do ego ainda nas nuvens.

Conhece de cor todas as razões do seu infortúnio. Que infelizmente, não é apenas dele. Tem apenas uma alegria: saber que alguns dos seus vizinhos – muitos sequer mitaram – estão piores que ele. Há situação de penúria. Relatos de pobreza. Cenário de extrema pobreza. Não se compadece. Mas também agoniza.

E agoniza engasgado. Como muitos iguais a ele. Engolindo a seco o orgulho. Ruminando ressentimentos. Não se arrependem. Nem que tenham que empurrar carrinho de picolé (com todo respeito aos picolezeiros) nas horas de folga para complementar a renda. Empertigado, só baixa a cabeça para tentar esconder a vergonha de se sentir pobre. Embora o seja.

Pode até não votar no diabo que o está fazendo comer pão amassado, mas jamais votará em qualquer candidato que prometa comida no prato para todos. Isso é coisa de comunista. A tez já amarela pela falta de nutrientes. Ainda bem: sua pele jamais será vermelha.

 

* Professor e jornalista

 

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