* Márcio Alexandre
Da periferia, não se continha de alegria ao chegar na universidade. Felicidade conjunta: pais, irmãos, primos, amigos próximos. A aprovação no então vestibular mobilizou quase todo o bairro. Pudessem, os vizinhos teriam decreto feriado municipal.
Nos corredores da academia, encantava aos moçoilos pela compleição física. Em sala de aula, chamava a atenção pelos atributos cognitivos. Mas fazia mesmo era os parentes suspirar. Os cincos anos do curso duraram uma eternidade para eles. Vê-la formada, com anel no dedo e o diploma na mão. Primeira filha formada. Uma professora na família. Quase inacreditável. Para alguns, talvez algo prosaico. Para filhos de pobre, uma odisseia.
Graduou-se, prestou concurso público, foi aprovada. Chamou a atenção de um homem. De mais idade e poucos modos. Mesmo na frente da família, não a tratava bem. Por uma razão que a razão desconhece, se apegava ao affair quanto mais ele se mostrava rude. Casaram. Para felicidade dele, orgulho dela e desespero dos parentes.
Havia razão de ser na preocupação dos genitores. Diminuiu a ida à casa materna. Os valores familiares eram ditados apenas pelo marido. Esse, formado na Universidade do Zap-Zap. Tornou-se Mestre em Fake News. A tese de Doutorado, na Faculdade do Ódio, teve como tema “Pátria, Deus e Família”.
Ria quando o marido soltava impropérios a quem discordasse de sua opção política. Por dentro, chorava de vergonha. Se viu, pelas exigências do companheiro, forçada a mitar. Para colegas de profissão, um absurdo. Não combinava com ela a concordância com a crueza da maldade de quem representava riscos. Principalmente para a educação.
Infelizmente, fraquejou. Permitiu que a submissão lhe levasse ao fundo do poço da falta de dignidade. Deixou de ter vontade própria. Parou de ter sonhos. Desistiu de melhorar. Agora, o pensado, o dito e o feito são apenas o que o marido permitir.
Na falta de argumentos a justificar a mudança – para muito pior – passou a agredir. Assim como a cara-metade, as mentiras ditas por seu ídolo viraram verdade absoluta. Irrefutáveis. Inquestionáveis.
Nos grupos de zap, substituiu a frustração de ter feito a escolha errada pelo desejo de brigar. Trocou a polidez pelas palavras de baixo calão. Descambou para o achincalhe. O nariz ainda empinado. A alma carcomida pelo remorso é denunciada pela falta de brilho no olhar. Segue fraca, submissa, sorumbática, tétrica, caquética. Só levanta a cabeça para concordar com o marido: 2022 seguem mais uma vez nas trincheiras do “capetão”.
* Professor e jornalista
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