* Ailton Siqueira de Sousa Fonseca
Clarice Lispector. “Você escreve uma em cima e outra embaixo porque é um verso”, disse Vinicius de Morais à própria Clarice quando, em entrevista, ela o pediu para criar de imediato uma poesia (Lispector, 1999, p.20). O nome Lispector nem ela mesma sabia exatamente o que significava. Tudo que disse saber, em entrevista à TV Cultura, foi que Lispector era um nome latino e que em latim LIS quer dizer “no peito”, “flor no peito”[1] .
Clarice Lispector: história de gente grande para gente pequena (2021), ilustrado por Spacca e publicado pela Limiar, é fruto de quem carrega essa “flor no peito”, flor que é alimento para os apaixonados por Clarice. Escrita por Dany Al-Behy Kanaan, psicanalista, escritor e professor, essa obra é direcionada ao público infantil, mas também a qualquer interessado ou apaixonado pela escritura clariceana.
Trata-se de uma obra que pode ser vista por duas perspectivas. Por um lado, pode ser vista como mais uma obra narrando a vida de Clarice Lispector, algo já conhecido pelos estudiosos, curiosos e fãs dessa escritora. Por outro lado, pode ser recebida como uma narrativa necessária para um público ainda não leitor e não conhecedor da vida/obra de Clarice. Li a obra abraçando essa segunda perspectiva.
Para além disso, o livro não traz somente fatos históricos da biografia dessa grande escritora, mas aqueles momentos “alegres e chatos vividos por ela”. Mas, para mim, o mais importante não é o que está dito, mas a forma do dizer. Com seu estilo sensível e poético, Kanaan sabe o que diz, mas investe, sobretudo, numa forma singular de dizer. Para ele, não é o dito, mas o dizer que está no limite entre a Ciência e a Literatura, entre o prosaico e o poético, entre a palavra técnica e a magia. Como disse certa vez o filósofo e poeta Jean-Yves Leloup, “Quando tudo está dito, resta cantar”.
Essa nova obra de Kanaan é como um canto que encanta pela forma de dizer o que já estava dito; encanto que faz uma criança ou um adulto querer ouvir a mesma história durante mil e uma noites. O que estava dito, agora é cantado enquanto é contado. É assim que as palavras enovelam o leitor e este vai se identificando com a narrativa à medida que vai sendo tocado por ela em seus vários pontos.
Penso que Kanaan escolhe e constrói sua narrativa a partir de alguns pontos ou focos irradiadores de sentidos para ele. Ou seja, parte daquilo que diz mais a ele, que o faz sentir, aproximar-se e dizer mais sobre a vida e obra de Clarice. É isso que chamo de foco irradiador de sentidos, algo presente na arte de contar histórias e na escuta do leitor ou ouvinte. A partir desses focos se estabelece as conexões e diálogos diversos entre o autor, sua obra e seus leitores.
A leitura que fiz de Clarice Lispector: história de gente grande para gente pequena, também é marcada por essa escuta a partir de alguns pontos que me tocaram, irradiaram sentidos em mim. Portanto, não contemplarei toda obra, mas aspectos dela. Com isto, não faço, aqui, uma resenha, mas uma tessitura de sentidos daquilo que ficou da escuta que fiz dessa obra, obra essa que fez o meu lado pequeno crescer à medida que a história ia sendo narrada.
O livro é uma narração e como tal, não traz explicação, mas implicação do autor com sua obra. Kanaan se coloca não somente como narrador da vida de Clarice, mas também como narrador de si. Ele se narra ao narrar a história de Clarice: apresenta seus gostos, suas preferências, posições e emoções diante da obra clariceana.
Referindo-se às histórias infantis que Clarice escreveu para seus filhos, Pedro e Paulo, confessa: “Eu gosto muito de todas as histórias. A que eu mais gosto é uma que tem um personagem chamado ‘Xext’” (Kanaan, 2021, p.22). Antes de qualquer coisa, isso é uma estratégia de escrita para envolver aqueles que leem o texto. Ou mais ainda: uma forma de estimular a escuta sensível do texto, tal qual ele mesmo fala em sua obra Escuta e subjetivação (Kanaan, 2002).
Essa “história de gente grande para gente pequena” diz mais do que aquilo que está dito. Estrategicamente clariceano e poético, o autor aposta na força do não-dito como uma forma de expressão e comunicação com o leitor: “Tem um dos livros dela para crianças que ele é quem conta a história – só de imaginar, dá vontade de ler – mas é claro que não vou contar qual é o livro e nem como ele faz isso, para você ficar com vontade de descobrir” (Kanaan, 2021, p.25).
Essa estratégia enlaça o leitor, seja criança ou adulto, pois estimula a curiosidade e imaginação em busca de conhecimento: “Será que você descobre o nome do livro? Tenho certeza que assim que você ler, logo vai descobrir” (Kanaan, 2021, p.22).
Escrever e ter a delicadeza para não esmagar as entrelinhas é um cuidado comum a Clarice e a Kanaan, porque ambos sabem que é, nas entrelinhas, que um leitor curioso entra e faz morada, faz-se parte do que lê. É nas entrelinhas e no não-dito que o leitor constrói seu imaginário, sua fantasia, seu modo ficcional de viver a realidade. Assim, essa história sobre Clarice é também a narrativa de um leitor que a acompanha, que segue seus passos no escuro para não se mostrar ou interferir no rumo do que acontece.
Penso que nessa nova obra de Kanaan sobre Clarice Lispector há uma aposta no escuro: criar novos amantes de leitura, aqueles nos quais esperamos ver nascer a paixão pelo escrever, novos escritores possuídos por uma razão apaixonada, razão que sabe que ficção e realidade, vida e ideias fazem parte da condição humana. Por isso, essa obra chega em boa hora, já que vivemos num mundo no qual vemos, a cada dia, desaparecer o sujeito narrador e leitor. Portanto, investir esforços práticos e cognitivos na construção de novas narrativas e estimular novos narradores é uma forma de resistir contra a desumanização do mundo, é reinvestir nos encantos e na magia das palavras com seus poderes de se tornarem aquilo que elas mesmas falam. Sem acreditar nesse “impossível possível”, como diz Edgar Morin (1996), não faz sentido apostar na leitura, na literatura, no amor e poesia de se viver.
Depois de lê e escutar várias vezes essa nova obra de Kanaan, fiquei com uma forte compreensão de que o livro não é somente para gente pequena: é também uma história de gente grande para gente grande que sabe viver o mundo de gente pequena. Uma criação que amalgama vida e ideias, razão e ficção, realidade e imaginação poética. É, também, uma leitura além das fronteiras disciplinares, para todos aqueles que querem fazer do ato da leitura uma aventura de descobertas do mundo, dos outros e de si mesmo.
E mais, o autor faz mais do que contar uma “história de gente grande para gente pequena”. Ele estimula gente pequena a pensar como gente grande, a tentar descobrir um mundo presente na escrita, nas narrativas, um mundo de homens, feito de palavras e poeticamente multiplicado pela escrita. Assim, aqueles que leem essa obra apostam na beleza do dia que ainda não nasceu
Danny tem mais do que uma razão apaixonada por Clarice. Parece que sua trajetória se aproxima, em algumas passagens, com a de Clarice. Assim como Clarice escrevia para adultos e crianças, ele, Danny, escreve para adultos e, agora, com essa obra, passa a escrever para criança. Mas tanto em Clarice como em Dany, a criança a quem se destina as narrativas não é somente a criança jovem, começando a viver, pequena.
Trata-se da criança poeta, aquela que cada adulto preserva dentro de si, aquele lado sensível, imaginativo, criativo, aquela criança que ainda precisa de uma história para ir dormir e para suportar a crueldade do mundo. uma criança que encontra nas palavras um jeito de reconstruir sua vida e reinventar o seu mundo. porque o homem e o mundo se fazem no verbo e com o verbo.
[1] Entrevista à TV Cultura (programa Panorama Especial) concedida em 1977, meses antes de seu falecimento.
* É doutor pela PUC-SP, professor na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), docente do curso de Ciências Sociais e Políticas e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais na UERN, coordenador do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN), membro da confraria Café & Poesia. Temas de interesse e pesquisas: literatura e psicanálise, relações afetivas na contemporaneidade, poesia de cordel e do repente, cultura popular, ciência e literatura.
Referências bibliográficas:
MORIN, Edgar. Para uma reforma do pensamento. In: Encontros de Châteauvallon. Para uma utopia realista: em torno de Edgar Morin. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p.119-128.
LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro: (entrevistas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
KANAAN, Dany Al-Behy. Clarice Lispector: história de gente grande para gente pequena.Ilustração: Spacca. São Paulo: Limiar, 2021.
KANAAN, Dany Al-Behy. Clarice Lispector: história de gente grande para gente pequena. Ilustração: Spacca. São Paulo: Limiar, 2021.
KANAAN, Dany Al-Behy. Escuta e subjetivação: a escritura de pertencimento de Clarice Lispector. São Paulo: Casa do Psicólogo, EDUC, 2002.
Nosso e-mail: redacaobocadanoite@gmail.com
Amo A.S. e tudo que ele diz e escreve.