* Por Jônatas Andrade
Não fôssemos uma nação tão pedante, saberíamos enxergar e valorizar nossas próprias produções artísticas. Sofremos de uma inesgotável síndrome de viralatismo. Tendemos a achar que qualquer obra artística brasileira está aquém da mais capenga produção estrangeira. Essa síndrome é tão gritante que o padrão maior de qualidade é, vejam só, a produção artística americana.
Pois bem, “Que Horas Ela Volta”, da Anna Muylaert, diretora do ótimo “Durval Discos” (2002), que foi exibido pelo extinto Cineclube Mossoró, foi uma produção nacional que se arriscou além-mar, sendo reconhecida e premiada lá fora. A saber: prêmios de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Sundance (Estados Unidos), que foi dividido entre a Regina Casé e a Camila Márdila, respectivamente, mãe e filha no longa da Muylaert, e Melhor Filme do Público, no Festival de Berlim.
Anna Muylaert realizou um impactante trabalho sobre a divisão de classes e os estereótipos que podem ser encontrados no mais restritivo e rasteiro olhar em uma casa de uma família da elite brasileira. Restritivo e rasteiro pois, em um aguçado segundo olhar, a elite não suportaria ver como trata aquelas e aqueles acolhidos em seu lar.
Val (Regina Casé) é o retrato do bibelô que representa a tal “é quase da família”. A diretora, para visualmente contradizer o “é quase da família”, intencionalmente relega Val aos segundos e terceiros planos em sua desimportância socioeconômica naquele espaço.
Val é enquadrada atrás de grades, com sua visão sempre limitada aos curtos e pequenos vãos das janelas embaçadas que ela limpa logo no início do filme, por exemplo. Contudo, o “seu” pequeno espaço, a cozinha, assim como o seu também pequeno quarto, possuem mais vida que o restante dos ambientes da casa. Em duas grandes cenas, Val é filmada em um plano plongée (de cima para baixo) ora distribuindo carinhos ao carente filho da família proprietária da casa, ora desentendendo-se com a própria filha. Seu pequeno quarto, que lhe engole junto com “todas” as suas conquistas materiais de dez suados anos de trabalho, ainda consegue abrigar, mesmo que no chão, mais uma pessoa — em meio às caixas e sonhos.
Jéssica (a jovem e talentosa atriz Camila Márdila), a filha de Val que sonha em fazer vestibular de arquitetura, representa o bom arquétipo: é jovem, antenada, sonhadora, curiosa sobre a vida e ciente da necessidade de um curso superior para o melhor desenvolvimento de seu processo de empoderamento. Em “Dialética da Colonização”, Alfredo Bosi afirma que o processo de aculturação ocorre a partir do choque de diferentes culturas. Uma, enfim, acabará por engolir e sobressair-se em detrimento da outra.
Em “Que Horas Ela Volta”, Jéssica, sozinha, é o peso da balança da aculturação ativa sobra a passiva do restante da família. Jéssica é a mola de propulsão de uma nova dinâmica familiar que afetará a todos. Em determinado momento, certa personagem afirma que a pessoa de estilo é
aquela que consegue escurecer-se. Ou seja, a pessoa com estilo aparece e se destaca sem precisar forçar sua presença. Ironicamente, a dona da frase acima profere-a enquanto está literalmente sob holofotes, bastante maquiada, defronte ao belo azul da água cristalina da piscina da casa de um bairro nobre, bem penteada e sendo entrevistada. Enquanto isso, escanteada e no reflexo do mesmo vidro antes embaçado e agora limpo do início do filme, temos a figura de Val, parcialmente escurecida, apenas a observar a entrevista sendo realizada. Se estilo é saber escurecer-se sem chamar atenção, visualmente, o longa-metragem da Muylaert soube facilmente apontar quem, de fato, possui o estilo propagado pela personagem de maior destaque e pompa da cena.
Sem spoiler, atentem para um certo jogo de cores que acontece na penúltima e última cena do filme. Tal jogo não aparece gratuitamente. Faz ponte direta com certa cena lá pelo meio do filme. E o uso mais que certeiro da canção de João Gilberto (a bossa-nova para poucos) em um festivo momento da elite que não enxerga ninguém que não lhes sejam equiparados social e economicamente?
E a cena em que, para elevar-se e finalmente empoderar-se, determinada personagem precisa descer ao mais baixo grau da casa onde trabalha (um lugar proibido, segundo a mesma personagem)? É uma das mais belas cenas que qualquer cinematografia mundial produziu nos últimos dez anos. Vai por mim.
Não sei Que Horas Ela Volta, mas sei bem a hora que elas vão chegar: Val e Jéssica vieram para ficar e fincaram uma nova e bela peça artística em um panteão de outros grandes e marcantes filmes nacionais.
* Graduado, especialista e mestre. Membro da Associação de Críticos Cinematográficos do RN e conselheiro municipal de Cultura em Artes Visuais.
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