* Márcio Alexandre
Não tenho dificuldade em aceitar que as pessoas definam ou rotulem os fatos, as situações, as coisas. Aceito a obviedade de que quando se expõe uma opinião ou se relata um fato e se a coloca sob escrutínio público, se façam as observações que cada um julgar pertinentes. Cada um observa o que está sob seu olhar a partir das suas concepções.
Assim o digo porque, a despeito de ter vivido uma vida regrada, sempre a vivi sentindo felicidade. Não como obrigação. Jamais como imposição. Sempre como resultado das coisas que me aconteciam, de como as encarava e especialmente do que aprendia com elas. E, materialmente, a situação era muito difícil. Ter sido feliz em tais condições não significa romantizar a pobreza, mas respeito quem pensa em contrário.
Mas lembro que os recursos financeiros eram os mais reduzidos possíveis. Eram oriundos da luta de minha mãe, Damiana, como doméstica. Salário pouco para muitas obrigações: aluguel, alimentação, vestuário e educação. Escola pública, claro. Mas para estudar, são necessários livros, lápis, cadernos, e outros apetrechos escolares e instrumentos pedagógicos.
Morávamos na Estrada da Raiz, há algumas léguas da escola, localizada por trás do agora Supermercado Rebouças da Alberto Maranhão. Nossa primeira unidade de ensino foi a Associação de Normalistas, que ficava no prédio onde atualmente funciona a Associação dos Surdos de Mossoró.
Dois anos mais velho que eu, meu irmão Marlon foi o primeiro a inaugurar a vida escolar. Nesses dois primeiros anos em que era o único a queimar pestanas para aprender, ele experimentou uma “bonança”: fez uso sozinho de um caderno. Uma exclusividade. Um luxo.
Quando chegou a minha vez de também sentar nos bancos escolares, tivemos que nos tornar ainda mais unidos, mesmo ainda crianças e desafiando todas as leis que regem a convivência entre irmãos. Tivemos que dividir o mesmo caderno. O dinheiro de nossa mãe só dava para um desses livretes.
Para que a engenharia desse certo, era imperioso, claro, que cada um estudasse em turno diferente. Um usava o caderno pela manhã. À tarde, o equipamento seria companheiro do outro. E ai de quem fizesse mau uso das folhas. Tínhamos que ser quase perfeitos ao copiar a atividade para não desperdiçar sequer linhas.
Alguns anos depois, quando meus dois outros irmãos também começaram a estudar, mãe fez um esforço, desses que só as mães conseguem fazer, e passou a comprar dois cadernos. E eles precisavam ser identificados. Com os dois nomes, logicamente. Marlon na parte de cima de um. O meu na parte de baixo da capa desse. No outro, Pedro (mais velho) na parte de cima e Magnos, na parte de baixo desse segundo.
Para mim, curioso, era uma festa nas horas vagas ver o que Marlon tinha estudado. Além disso, me interessava ler palavras que eu considerava mais difíceis, já que ele estava duas séries à frente da minha. Obviamente, rolavam alguns desentendimentos, principalmente quando um escrevia na parte do caderno que estava destinado ao outro. Surgiam então aqueles arranca-rabo característicos das relações fraternais impúberes.
Fomos vencendo as dificuldades, inclusive da trajetória escolar, marcada que era pelas limitações financeiras de uma casa mantida por uma mulher que, como doméstica, mantinha 4 filhos e os mostrava a importância inadiável, insubstituível e imprescindível de se aprender. Foi assim que fomos percebendo a força que o esforço tem e a dignidade que a educação dá.
* Professor e jornalista
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