* Jônatas Andrade
‘Idiocracia’ é o filme que ‘Não Olhe Pra Cima’ gostaria de ter sido. Foi lançado há 15 anos, foi muito menos alardeado, possui um elenco bem menos hollywoodiano e sua pretensão acabou sendo muito mais certeira em traçar os rumos do futuro do mundo do que a nova empreitada da Netflix dirigida pelo Adam McKay, que já havia feito A Grande Aposta há poucos anos, filme que empresta certos elementos de linguagem e narrativos ao seu novo filme.
O que Não Olhe Pra Cima faz é bater em cachorro morto. Nesse caso, em forma de sátira, o filme até acerta pelos retratos abobalhados de figuras que facilmente conseguimos reconhecer em tela a partir de um olhar para os anos recentes dos Estados Unidos. Todavia, é apenas a transposição do real para o ficcional de forma simplificada, algo que Idiocracia, repito, faz muito melhor.
Há dois destaques realmente importantes no filme. Um deles é bem mais visível, já o outro, pisca menos em tela, e talvez funcione melhor justamente por isso.
O primeiro destaque é o personagem do Mark Rylance, que interpreta um Midas da tecnologia cuja modulação de voz, os trejeitos e o figurino variam entre Steve Jobs e Elon Musk, duas figuras que são, sabidamente, uma in memoriam e outra atualmente, detestáveis do ponto de vista pessoal e no trato interno com seu círculo profissional. O trabalho de Rylance é mais gratificante de se assistir porque sua emulação precisa abraçar o cinismo capitalista, a sátira e o humor mais despojado para funcionar. E funciona!
E antes do segundo destaque, um adendo sobre o resto do elenco. Sobra, ao tarimbado cast do filme, a dura missão de apenas expor aquilo que todo mundo já sabe que existiu e ainda existe, mas já sem tanta força (?): a alt-right americana, cuja alcunha sapatenizada é para esconder o fato de que são da extrema-direita, o negacionismo científico aliado às teorias conspiratórias e as figuras abobalhadas do alto escalão político estadunidense.
O segundo destaque, que é outra coisa que funciona muito bem no filme, só que apenas em seu terceiro ato, é o apequenamento do cerne narrativo ao final, em detrimento do pano de fundo apocalíptico que move o filme. Todo o plot narrativo do jantar em paralelo ao que acontece no planeta é excelente. Só que são minutos de cena, sequer é o trecho maior do terceiro ato fílmico, infelizmente.
Não Olhe Pra Cima é um filme que bate no passado recente, só que no presente, quando a afronta não surte efeito por ser extemporânea. É um filme que teria muito mais efeito se fosse lançado há um ou dois anos. Retratar aquilo que todo mundo já viu serve apenas para confirmar aquilo que vimos, ouvimos e lemos, dia após dia, de líderes mundiais que flertaram/flertam com neofascismos e afins. Quero crer que a Netflix teve problemas com as filmagens de tantos astros e, por conta disso, resolveu adiar o filme, que deveria ter sido lançado no ano passado. Quanto à janela para lançamento, estando pós-produzido, nem seria problema, visto que o filme saiu direto para o serviço de streaming da empresa.
Voltando ao Idiocracia, ele fez isso tudo muito melhor há 15 anos. Inclusive com a longa viagem ao futuro que Não Olhe Pra Cima ousa fazer em uma das suas duas cenas pós-créditos (as duas cenas são ruins e dispensáveis, apenas acrescentando ainda mais minutos em um longo longa-metragem). Idiocracia arriscou-se no terreno da ‘futurologia’ (obrigado, Mark Fisher) satírica de forma muito mais eficaz e, de fato, conseguiu apontar caminhos que realmente aconteceram anos e anos depois.
O filme conta ainda com uma trilha-sonora moderna e inquietante, casando bem com a proposta apocalíptica do longa. Todavia, o excesso de duração do filme (são cerca de duas horas e vinte minutos), além do excesso de personagens, prejudicam demais o resultado final. Talentos são desperdiçados gratuitamente, como o geralmente ótimo Timothée Chalamet, cujo personagem é apenas um bônus de luxo sem função nenhuma no roteiro a não ser funcionar como par romântico da personagem da Jennifer Lawrence.
Quanto ao personagem do Leonardo DiCaprio, cuja filmografia ele trata com esmero, não aceitando participar de qualquer filme e quase nunca tendo mais de um filme lançado por ano, resta crer que ele aceitou participar de Não Olhe Pra Cima por ser um ativista das causas ambientais e políticas, então assinou o contrato mais por conta do que ele, através do filme e com o filme, poderia dizer ao mundo. Ao que tudo indica, pelo burburinho que o filme anda causando, ao menos isso funcionou, mas não conta para o filme, e sim para o ator e o que ele vocalizará para o mundo usando o filme como uma mera ferramenta.
Os filmes do Adam McKay enquanto diretor de comédias funcionam bem melhor. Quando o abobalhamento na vida real já existe, a sátira é apenas uma reprise mais curta do que passamos uma gestão presidencial inteira vendo. Por isso, quando ele usa a comédia para desmistificar algum tema, como a Crise de 2008, ele acerta bem mais, como foi com o excelente A Grande Aposta, de 2015.
* Coordenador de Tutoria na Diretoria de Educação a Distância da UERN, Membro da Associação de Críticos Cinematográficos do Rio Grande do Norte (ACCiRN) e Conselheiro Municipal de Cultura em Artes Visuais.
** Publicado excepcionalmente nesta segunda-feira
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