A covardia dos ingratos

por Ugmar Nogueira
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* Márcio Alexandre

 

Era um rapaz pobre do interior do interior do Rio Grande do Norte que sonhava ser advogado. Filho de mãe lavandeira e pai agricultor, sabia que as dificuldades para tornar real o que alimentava nos sonhos eram inimagináveis. Mas mantinha a esperança.

Ao terminar o Ensino Médio, a realidade bateu ainda mais forte. A unidade de ensino superior mais próxima de sua cidade ficava a no mínimo 150 quilômetros de distância. Além do mais, a necessidade de ajudar no sustento da casa tornava ainda mais longe a possibilidade de estudar Direito, um curso caro. Mesmo em universidade pública, há custos elevados.

Buscou resolver as primeiras situações. Virou policial. Pouco tempo depois, casou. A namorada já grávida. A chegada do primeiro rebentou aumentou a alegria família e os custos para mantê-la. Passou a fazer bicos nas folgas. Ia se virando. E mantendo o sonho vivo.

Os anos foram se passando, e o desejo se mantém cada vez mais forte. Fez seleção pública e foi aprovado no sonhado curso de Direito. Passou na reserva de cotas. Feitas as contas, percebeu que seria quase impossível se deslocar à sede da faculdade. Pior, ter que manter a família e ao mesmo tempo os custos no município dos estudos.

À esquerda, uma luz se acendeu. O governo federal criou, exatamente no ano em que ele precisava, uma bolsa para profissionais da segurança pública. O presidente da época, então, virou uma grande referência. Um herói. Quase uma paixão.

Com o dinheiro dessa bolsa, pagava a colegas para “tirar serviço” por ele enquanto passava os finais de semana na sede do curso. As vacas eram tão gordas que nem aos sábados e domingos precisava trabalhar. Churrasco e cerveja eram mais atrativos, afinal de contas ninguém é de ferro.

Namorador, fazia da monogamia brinquedo sob sua manipulação. A distância, os namoros e as farras domingueiras o foram afastando da esposa, fiel companheira, mulher que aguentou todos os seus reveses, dificuldades e mudanças de humores. Mesmo ela se mantendo firme na relação, ele a abandonou. No seu pensamento, o coração necessitava de um novo amor. Logicamente, com menos idade.

Suas feições foram se alterando. Seus desejos se metamorfoseando. Trocou discursos de amor por apego às armas. Comida para todos por excludente de ilicitude. Papo com amigos por vídeos negacionistas de redes sociais. O sangue caserneiro tão forte que abobalhou-se. Viu inteligência no ódio. Sensatez na raiva. Honradez na imbecilidade.

Hoje não tem mais a companheira de anos, a mãe dos filhos. O afeto dos rebentos também escasseou. Do governo que admirava, tem o diploma de Direito, raiva e ingratidão. Não era pra ter mais pobres chegando à universidade. As oportunidades eram pra ter cessado quando chegou sua vez. Em 2022, os dois últimos dígitos serão acionados na urna. Pra tudo tem limite. Principalmente para os mais humildes. Essa gente já chegou longe demais.

 

* Professor e jornalista

 

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